Os frutos de nossa sociedade

por MARCOS HILLER

Caminhando por um edulcorado supermercado de um bairro sofisticado de São Paulo, testemunho uma cena que é, ao mesmo tempo, algo pitoresco, triste e, acima de tudo, reveladora sobre a sociedade em que vivemos e a cidade em que habitamos. Em uma quinta-feira qualquer, após uma reunião de trabalho, decidi fazer algumas rápidas compras em estabelecimento infestado da chamada elite paulistana. Adquiri dois pães franceses, um copo de requeijão Poços de Caldas e 150 gramas de peito de peru, cortado beeeem fino, como de praxe. Ao explorar o setor de hortifruti em busca de avocados maduros (uma missão, por sinal, fracassada), deparei-me com uma cena indescritível, mas que, obviamente, tentarei descrever ao longo deste texto.

Este supermercado de luxo, como qualquer outro de alto padrão em São Paulo, conta com dezenas de funcionários espertos espalhados pelos corredores, todos de prontidão para ajudar os clientes com os mais variados pedidos: esclarecer dúvidas, ajudar a alcançar um item em uma prateleira alta, reorganizar produtos nas gôndolas, entre outros. Eis que no setor de verduras e frutas, presenciei um homem fazendo um pedido incomum a um desses funcionários: “Por favor, pegue para mim três mamões: um para sexta-feira, outro para sábado e outro para domingo”. Bem, cada um tem seu método de escolher as frutas. Mas o que chamou a atenção foi que, além de terceirizar a escolha de suas frutas, baseada em critérios de maturação, ao receber os três mamões, o distinto freguês solicitou que o funcionário, com uma caneta BIC azul, escrevesse na casca de cada um deles: “sexta”, “sábado” e “domingo”.

Embora seja apenas uma pequena história de um dia comum em um supermercado frequentado pela elite da cidade que vivo, ela nos é extremamente reveladora e sintomática. Sem fazer juízos morais apressados ou generalizações precipitadas, tento analisar e questionar tal acontecimento. No entanto, arrisco dizer que isso não é um caso isolado, mas um ato que se espraia nos mais diversos comércios de nossa cidade e de nosso país. Não é um fato isolado, mas o sintoma de uma sociedade doente, da qual fazemos parte. Explicarei melhor.

Esta situação e a maneira como ela se desenrola ecoa as ideias da renomada filósofa brasileira Marilena Chauí. A aclamada professora FFLCH USP tem uma visão crítica da classe média brasileira, apontando-a como um segmento da sociedade conservador, preconceituoso e facilmente manipulado pelo sistema capitalista. Segundo ela, a classe média, na busca de consolidar sua identidade e status, tende a adotar práticas e atitudes que acentuam as desigualdades sociais, ao invés de minimizá-las. “A classe média é uma aberração cognitiva”, disse certa vez a filósofa. Essa fala da professora brotou na minha frente flutuando como uma espécie de holograma 3D, quando presenciei a tal cena dos mamões com respectivas cascas escritas à caneta BIC. O cenário que descrevi se enquadra muito bem nessa descrição, revelando uma atitude de superioridade e despreocupação com o outro e que é, infelizmente, comum em muitas situações semelhantes.

Olhando para o passado implacável de nossa História brasileira, vemos que nosso país teve cerca de 388 anos de escravidão. Nenhum outro país do mundo chegou a esse número ok? O tráfico de escravos africanos começou no Brasil em 1538 e só foi oficialmente abolido em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. Contudo, isso não significou o fim total dessa mancha vergonhosa da nossa História. Trabalhos análogos à escravidão persistem até hoje, seja em motoristas de aplicativos, vinícolas no sul do país, lojas de roupas ou até mesmo nos lava-jatos de nossos bairros em que as cidadaões do bem mandam lavar suas SUVs. Embora a escravidão seja uma das páginas mais sombrias da História brasileira, ela ainda deixa vestígios em diversas situações de nossa vida e que, em muitas vezes, damos de ombros ou fingimos não ver.

A situação a que fui testemunha ocular é um sintoma de um capitalismo que cria classes bem delimitadas, acostuma mal as pessoas, gera castas, não democratiza espaços, privilegia poucos e, essencialmente, acentua as desigualdades sociais em nosso sofrido país. É um sistema econômico e político que fabrica indivíduos que têm certeza que são superiores às demais. Vale lembrar que, no bairro em questão, um candidato neofascista de extrema direita obteve recentemente um percentual significativo dos votos. Isso nos leva a crer que o tal cliente do mamão provavelmente deu seu voto a esse candidato. O bairro é uma bolha, infestado de herdeiros de senhores de escravos e que pagam menos impostos do que eu, do que você, do que nós.

Como sociedade, falhamos. Uma sociedade onde um sujeito entra em um mercado, pede que um funcionário selecione mamões de acordo com a matiz cromática correspondente aos dias da semana é uma sociedade infeliz, moribunda e, fundamentalmente, enfadonha. Deixei o punchline dessa história para esse parágrafo final. Apesar os três riscados mamões Formosa, que somaram 51 reais, o cliente analisou os três de uma forma mais cirúrgica e decidiu levar apenas dois deles para o caixa. Mas espera, e o mamão rejeitado que estava com sua casca riscada à caneta? Que fim levou? Para este cidadão canalha, o universo dará um destino a este mamão rejeitado, renegado, abandonado, largado ao relento. Pobre mamão.

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