Risco não calculado

por Ricardo Miranda*
Sou jornalista há 25 anos. A maior parte do tempo em Brasília, quando conheci quase todo o país – de Xapuri a Novo Hamburgo, de Corumbá a Vitória – e diversos lugares do mundo – de Guadalajara à Antártica, de Milão a Assunção. Nos últimos dez anos, moro no Rio. Sou apaixonado pelo Rio. E, a despeito do mercado profissional ser bem mais rarefeito do que em Brasília, criei vínculos pessoais que me enraizaram completamente na cidade. A começar por um casal de filhos cariocas, o que, suponho, me garante o título de carioca honorário. Algum tempo depois de me mudar, comecei a dar aulas numa faculdade particular da cidade, o que me oxigenou a cabeça e me obrigou a ver minha profissão a partir de ângulos que eu já não via mais. A vida acadêmica, de um lado, e o fato de, sob certo aspecto, ser um “estrangeiro” no Rio, me fazem olhar sempre com estranheza para coisas que observo no dia-a-dia da minha rotina profissional na cidade.

Repórter com colete à prova de balas? Carros de reportagem blindados? Áreas de conflito? Cobertura de risco? Não me habituo a ver a convivência promíscua de repórteres com fontes policiais assim como via com extremo desconforto a vida desregrada de alguns colegas de Brasília com suas fontes políticas, dentro e fora das casas do poder. Nunca me habituei a isso, assim como nunca me coloquei em situações que precisasse usar esses equipamentos e métodos. Nem por isso deixei de fazer reportagem, jornalismo com J maiúsculo.

Não sou, nem pretendo ser, porta-voz da imprensa, de nenhuma imprensa, de nenhum outro jornalista que não eu mesmo. Tento até hoje sem sucesso entender a minha profissão e o destino que escolhi. Essa é muito mais a visão pessoal de quem convive intensamente nessa trincheira há duas décadas, um ponto de vista parcial de quem nos últimos tempos dedicou parte de sua vida profissional a fazer um tipo de jornalismo que, por falta de nome melhor, convencionou-se chamar de investigativo. O que, a rigor, parece um erro de origem.

“Jornalismo investigativo é, antes de tudo, jornalismo”, definiu uma vez Eugênio Bucci. outro repórter, o brasileiro Lucas Figueiredo, sobre isso escreveu o seguinte: “A expressão jornalismo investigativo é uma bobagem sem tamanho. O que existe é a velha e boa reportagem em profundidade feita há tempos ancestrais”. E arremata: “Para mascarar a espantosa perda de qualidade de seus produtos, muitas empresas recorrem a um truque de marketing para iludir seus clientes, dizendo o contrário, que a qualidade aumentou. Muita informação boa tem sido levada ao público com a marca jornalismo investigativo, mas também muita picaretagem. Ambos, vendem bem”. Eu acrescento: o jornalismo investigativo parece pré-fabricado, feito para disputar prêmios. Tudo parece estar sempre pronto, no piloto automático, sem nenhuma discussão por trás ou capaz de provocar reflexão posterior.

A idéia que está na cabeça de todo jornalista é simples. A primeira impressão não é a que fica – há sempre outras que vêm depois. Nem tudo é o que parece – e de fato, como as aparências enganam! E, claro, onde há fumaça, há fogo – seja uma fogueira de vaidades ou um incêndio de grandes proporções. Por isso, o espírito investigativo – que é a lapidação da curiosidade inata a todos nós – é uma das características mais essenciais ao repórter e faz parte da trinca de qualidades indispensáveis na profissão, ao lado de um texto de qualidade (maior patrimônio do jornalista) e de um profundo sentido ético (maior obrigação desse profissional).

É preciso ter boas fontes, boa apuração, obstinação, persistência, ousadia, investimento do veículo (inclusive financeiro) e, claro, sorte. Nos tempos de hoje, adicione a isso intimidade com as ferramentas eletrônicas, atalhos em cartórios e tribunais e conhecimento de temas específicos como lavagem de dinheiro e narcotráfico.

O que me incomoda no rótulo “jornalista investigativo” é o sentido de casta que ele carrega, dando a idéia de pessoas especialmente preparadas, forjadas, escolhidas, legitimando uma espécie de clã dentro da profissão. Algo como um dom divino, polido pelas mãos terrenas dos editores nas redações. Sem falar no perigo para o ego de quem já o tem, muitas vezes, nas alturas.

Já ouvi alguém brincar dizendo que quando um jornalista investigativo vai se suicidar, ele sobe em seu próprio ego e se atira lá de cima. A carapuça não serve para a maioria de nós, mas é a cara de algumas pessoas que me ocorrem agora. E, quando percebemos, o jornalista se torna a estrela e a notícia sua escada, sua auxiliar, sua coadjuvante. E se a notícia é só o meio para alcançar um fim, que é o de ter o nome na primeira página ou o rosto na abertura do telejornal, ela se torna também maleável, moldável ou, em outras palavras, fraudável.

Essa ética elástica é o defeito, felizmente, de uma minoria. A maioria talvez padeça apenas daquela busca incansável pela eternidade. “O jornalista escreve para o esquecimento, quando seu sonho seria escrever para a memória e o tempo”, escreveu certa vez, para a eternidade, o escritor argentino Jorge Luis Borges.
De qualquer forma, foram “investigações” jornalísticas que ajudaram a mudar a história recente do país – tendo o seu marco zero nas reportagens que culminaram com o impeachment do ex-presidente Fernando Collor. E, no atual governo, ajudando a desvendar casos graves de corrupção no governo Lula. Mas isso não faz do repórter um investigador, no sentido policial, faz dele tão-somente um ótimo profissional. Não faz dele um missionário – seja a serviço da causa que for –, mas apenas alguém que luta para fazer seu trabalho bem-feito. Não faz dele um cidadão acima da lei, mas alguém que tenta mostrar algo que ninguém mais viu – ou um ângulo diferente do que todo mundo viu – sem precisar burlar nenhuma regra ou usar de meios espúrios para chegar ao seu fim.

Infelizmente, vivemos numa sociedade imperfeita, por isso fazemos um jornalismo imperfeito. Nós erramos. Eu já errei. Por sorte, aprendi. Algumas pessoas nunca aprendem. Já vi coisas no jornalismo que fariam alguns de vocês se comoverem com a devoção de um repórter, com o combate desigual contra interesses poderosos, com o empenho pessoal para trazer uma verdade que o próprio veículo duvida existir, com a luta para não desmoronar na cobertura de pequenas e grandes tragédias do nosso dia-a-dia, com o trabalho muitas vezes comprometendo a própria vida pessoal diante da paixão que temos pelo ato de escrever, de informar, e, até, de desfazer injustiças.

Mas já vi coisas vergonhosas, já vi jornalistas mais comprometidos com a fonte do que com a notícia, já vi donos de jornais mandarem seus repórteres para campos minados para depois venderem seu trabalho pela melhor oferta, já vi empresas jornalísticas criarem verdadeiras centrais de furos e depois entregarem seus repórteres aos leões do circo de processos que se transformou a indústria da injúria, calúnia e difamação.
Jornalismo, já se escreveu uma vez, é tudo aquilo que conseguimos enfiar entre um anúncio e outro. É um exagero grosseiro, mas, como todo exagero, é o reflexo esticado de uma verdade. A onda tecnológica trouxe tempos de mudança no jornalismo e eles, obviamente, se refletem em tudo o que você lê – na escolha das manchetes, dos temas, das prioridades. Essa mudança profunda no mercado, com a internet e as novas tecnologias alterando o perfil do leitor, exigem uma reforma no papel do jornal. E quando a grande mídia está diante do desafio de uma reinvenção, os cuidados devem ser redobrados.

Assim como um político não quer ser apeado do poder, os jornais e revistas querem manter sua influência na sociedade. E estão mudando sua estratégia de colheita. Há 40 anos, jornais e revistas eram os donos do mundo. Hoje, quando podemos saber de quase tudo 24 horas antes de sair publicado em qualquer jornal, quando o espaço entre nós e a notícia foi encurtado de forma frenética, a necessidade do furo, do escândalo, se ampliou. Como o próprio escândalo diminuiu seu prazo de validade, o show não pode parar.
Por outro lado, talvez seja o momento ideal de repensar nossa profissão. Ao prefaciar recentemente o livro Histórias do New York Times, sobre casos que comoveram os repórteres do jornal mais importante do mundo, o jornalista Heródoto Barbeiro escreveu:

“A missão do jornalismo, também, é contar histórias de seres humanos que possam contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e pacífica. Não é a de se enterrar na lama do sensacionalismo e divulgar apenas notícias ruins. (…) O jornalismo está associado à idéia de promoção do bem. Investigar e contar histórias ajudam os cidadãos a entender melhor e enfrentar o mundo que os cerca. O que poderia existir de mais compensador em uma profissão?”.

O efeito colateral do jornalismo dito investigativo, com sua busca compulsiva por novidades, por furos, por documentos exclusivos, por imagens inéditas, é o que chamam de “denuncismo”, onde importa menos a qualidade da denúncia, mas sua velocidade. Até porque, denunciar muitas vezes tem menos a ver com a busca da verdade e mais com estratégias deliberadas de mercado. E isso pode gerar excessos, abusos, aumentar a chance de erro, além do inegável risco para o profissional.

Essa busca, que no caso do repórter bem-intencionado se confunde com a tal construção de um mundo melhor, não pode tomar o lugar da responsabilidade, muito menos – como lembra o jornalista Leandro Fortes no livro Jornalismo Investigativo – “expor um repórter à sandice de criminosos”.

O caso Tim Lopes não refletiu apenas um grave problema de segurança pública. A morte de um jornalista investigativo clássico, como era Tim Lopes, deveria fazer com que todos nós pensássemos até que ponto é legítimo permitir ao repórter trocar lápis, papel e gravador por colete a prova de balas, carros blindados e microcâmeras.

O caso posterior da prisão e tortura de uma equipe do jornal O Dia, e outros casos que se sucederam, confirmaram que muita gente não aprendeu a lição mais elementar. Infiltrar repórteres numa comunidade dominada por bandidos não é só uma loucura, é irresponsável e criminoso.

Na já histórica “Carta aos jornalistas”, distribuída pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio, deve-se repetir sem parar: “É inacreditável que a tragédia de Tim Lopes (…) não tenha conscientizado as empresas de que nenhuma denúncia ou prêmio de Jornalismo vale uma vida”.

Não só a classe, mas todos os que se interessam pelo nosso trabalho, devem discutir com profundidade esse modelo de cobertura, o limite da investigação jornalística e o custo-benefício da ousadia e ambição profissionais.
* Ricardo Miranda é jornalista desde 1987. Foi repórter, editor e correspondente, em Brasília e no Rio de Janeiro, do Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S.Paulo, IstoÉ e Correio Braziliense. É professor de jornalismo da PUC.