Voltando à anormalidade (de sempre)

por Marcos Hiller

Ainda que não se saiba com clareza quais os rumos da Covid-19 em nosso país, é fato que um gigantesco número de pessoas começa cada vez a retomar suas rotinas diárias, seja pelas mais diversas motivações e sejam elas de trabalho, entretenimento, consumo, o que for. E diante desse cenário nebuloso, eu tenho um extremo orgulho dentro de mim de não ter usado até agora em momento algum de minhas aulas, lives, textos e conversas, o ultra desgastado termo “novo normal”. É um termo irresistível, né? Ele é provocativo, sedutor e vende bem por ele mesmo. Uma expressão simples e que magnetiza ávidos consumidores de informação para saber o que estaria por vir e o que está por vir. Muita gente está agoniada querendo ter uma bola de cristal que, ao meu ver, ninguém detém.

Quem preconiza um chamado “novo normal” prega nas entrelinhas que o mundo que se esquadrinha será novo, que nossa rotina será bem diferente do que era em muitos aspectos e que um dito normal (novo ou velho) é o ritmo que dá o tom e rege nossas vidas. Bem, eu sou um cético de carteirinha. Ainda que seja de proporções incalculáveis os prejuízos que a pandemia gerou, gera e irá gerar nas mais diversas esferas sociais, políticas, econômicas e culturais, eu parto do pressuposto que o vírus não provocará mudanças drásticas coisa nenhuma. Claro que já estamos presenciando certas mudanças em hábitos, comportamentos e modos de ser dos indivíduos na pandemia. Mas eu sou cauteloso pra sair concluindo coisas sobre tudo isso e resisto fortemente a generalizações reducionistas. Pra mim, claro que teremos mudanças, mas mínimas e lentas. Vejo que tenderemos a ser mais cuidadosos e criteriosos com nossa higienização pessoal. Digitalização da comunicação é algo que veio pra ficar e só tende a aumentar. No entanto, quando sair à vacina (oxalá que saia logo) é que então voltaremos às nossas vigentes condições normais de temperatura e pressão. Quer dizer, anormais.

Bater bumbo que um dito “novo normal” bate à nossa porta é algo que atrai pessoas, magnetiza audiências, vende livro, enche palestra, bomba lives, rende horas e horas de irresponsáveis elucubrações. Aliás, nesses tempos que confinamento forçado, milhares de lives brotaram em nossas timelines com pseudo-gurus de plantão e destilando as mais desvairadas certezas do que iria acontecer e do que não iria acontecer. Sem o menor anteparo científico, acadêmico ou conceitual, vi muitas, mas muitas pessoas, de forma despudorada, pregarem isso ou aquilo. Com meus poucos cabelos brancos que começam sorrateiramente a aparecer, parece que meu radar de detectar charlatões fica mais aguçado. Eu os detectei aos montes.

As poucas lives que participei sempre procurei analisar tudo com a lupa bem ajustada e muito reticente em relação a tudo que via. Tenho por hábito “subir no ombro de gigantes para tentar enxergar mais longe”, como bem nos ensinou uma vez o astrônomo, alquimista, filósofo, teólogo e cientista inglês Issac Newton. Tenho o saudável cacoete de convocar bons autores nas minhas aulas para iluminar a minha percepção e de meus queridos alunos sobre quaisquer coisas de nosso entorno. Ainda bem que temos pessoas lúcidas no mundo hoje, como o antropólogo Bruno Latour, pra mim, o maior intelectual do planeta hoje. Latour nos ofereceu, ao meu ver, uma das frases mais certeiras e foi na jugular ao dizer que: “Não há normalidade a que retornar”. Inclusive essa frase curta, mas lacradora (pra pegar o termo da modinha) foi projetada em alguns edifícios no centro de São Paulo. Definitivamente, não há normalidade a que retornar. Chamar de normal o mundo que vivemos é tapar os olhos e nos omitirmos para problemas gravíssimos que testemunhamos todos os dias. Para citar apenas um, pra mim dos mais capitais e mais graves: a extrema desigualdade social que assola nosso país de uma forma vil, secular, estrutural, crônica e endêmica e de complexa resolução.

Claro que com o avançar das semanas e meses de isolamento social, as pessoas anseiam pela volta às suas vidas, a fazer o que faziam antes, voltar ao normal, ao boteco cheio, ao show, à arquibancada, à praia e ao aeroporto. No entanto, para o antropólogo francês, não há porque voltarmos à vida como ela é. Para Latour, a pandemia nos evidenciou com muita clareza que sim, é possível cessar a atividade econômica global, ainda que inúmeros líderes políticos tenham passado anos e anos a fio bradando que o “trem do progresso” não deveria e não poderia parar de jeito nenhum. E muito mais necessário do que simplesmente voltar à nossa rotina usual do dia-a-dia, uma das reflexões mais importantes seria nós aproveitarmos esse momento atípico para buscarmos novas formas de viver, produzir e consumir, sobretudo diante de uma crise como essa, sem precedentes, e que permeia os quatro cantos do planeta.

O meu olhar nesse momento é de cautela, extrema atenção à detalhes e continuar subindo no ombro de gigantes como Latour, André Lemos, Muniz Sodré e tantos outros. Seguimos acompanhando tudo que conseguimos absorver. Concentro meu olhar hoje lá pra fora do Brasil. Ainda que cada país esteja reabrindo à sua maneira, gosto de tentar colher pistas do que acontece hoje na reabertura da Europa, China e Estados Unidos, para tentar projetar o que pode vir a acontecer aqui no Brasil quando tudo voltar à anormalidade de sempre. Rá!

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