“Nóis quer usar Lacoste porque nóis quer existir”: modos de (r)existência nas lógicas do consumo
por Marcos Hiller.
Nesse artigo, efetuaremos uma reflexão sobre quais as novas lógicas que atravessam hoje particularmente o mundo do trabalho, mais precisamente no que tange o fenômeno da precarização de trabalhadores a partir de uma dinâmica de plataformização dos modos de viver, trabalhar, se relacionar e consumir. De partida, citamos um elemento que enxergamos como algo decisivo em boa parte das coisas que vivenciamos e sentimos como mazelas de nossa cena contemporânea: o capitalismo. Para além de um sistema econômico presente em boa parte do mundo ocidental, ele tem constantemente revelado inéditas configurações para se adequar aos novos tempos que habitamos. Esse sistema tem se consolidado como um dos objetos mais férteis para observação e interpretação do mundo atual, pois para além de um modelo econômico que rege as lógicas de trocas e transações financeiras, na contemporaneidade, ele tem apresentado uma singular capacidade para se adequar, se adaptar e se transformar aos tempos vigentes, sejam quais forem as intensidades das mudanças ocorridas em seu entorno.
De fato, uma das características mais importantes do capitalismo, constituindo sua característica mais radical e essencial para sua sobrevivência como sistema, é sua expansão voraz, buscando insaciavelmente novos locais de acumulação e sorvendo cada vez mais aspectos da atividade humana dentro de sua extensão em um processo de mercantilização (HUWS, 2019). Dentro desse novo contexto de mundo, vimos agravar recentemente nas grandes cidades mudanças sociotécnicas nos modos de trabalhar e o crescimento de uma chamada gestão da sobrevivência7 ganhando proeminência de maneira contumaz. Segundo Negri (2015, p. 70) “o capital tem que colocar os corpos humanos para produzir diretamente, tornando-os máquinas, e não simplesmente mercadorias do trabalho”, sobretudo na cena urbana de metrópoles brasileiras, que interessa nosso foco de análise e onde são cada vez mais visíveis novos tipos de trabalhadores se multiplicarem pelas ruas, seja em meio de transporte motorizados, seja por meio de tração humana como as bicicletas. Os chamados entregadores de refeições surgiram diante de nossos olhos como uma nova categoria laboral. Quem é esse sujeito? Onde ele trabalhava antes? Qual sua origem social? São questões pungentes preliminares e que nos incita inquietações de pesquisa, mas que buscaremos problematizar em trabalhos futuros.
Para compreender o cerne dessas transformações, focalizaremos nosso olhar para o fenômeno da plataformização de profissões por aplicativo e jogaremos luz de forma mais cuidadosa na presença de um trabalhador ativista que tem ganho relevância por criar uma ferrenha oposição a essas forças do capital. Buscaremos compreender como tem se articulado uma das mais proeminentes formas de resistência periférica, sobretudo em um contexto em que a justiça social é banalizada e demonizada como politicamente correta (BROWN, 2019). Temos a intenção também de verificar quais os elementos da lógica da neoliberal que seriam integrantes de nosso tecido cultural para alicerçar um ideário empreendedor que seduz trabalhadores para esse modo vil de exploração e que “busca formatar a nossa existência” (CASARA, 2020, p.166). Por fim, temos intenção de apresentar os entrelaçamentos entre capitalismo, comunicação e consumo que se articulam.
Para tal observação e uma maior delimitação de nosso foco de análise, elegemos um ator- social que tem ganho visibilidade nos últimos anos. Mais conhecido como Galo de Luta, o ativista Paulo Lima é um motoboy que ficou conhecido por organizar e promover as greves dos entregadores de aplicativo no ano de 2021 por meio de um grupo intitulado “Entregadores Antifascistas”. Esse trabalhador foi preso durante uma investigação que apurou o incêndio da estátua do bandeirante Manuel de Borba Gato no tradicional bairro de Santo Amaro da cidade de São Paulo. O fato foi amplamente noticiado, ganhando relevância no debate acadêmico e na mídia sobre as lógicas que regem um ato de se atear fogo em monumentos. Até que ponto é um ato justificável, legítimo de atitudes de resistência e com a intenção de promover um apagamento um tipo de memória vergonhosa de nossa história? Ou até que ponto atear fogo em uma estátua se trata de um ato de vandalismo injustificável? Não iremos problematizar de forma atenta essa querela, embora façamos coro em relação à primeira hipótese.
O cidadão que elegemos como protagonista desse texto é um morador da cidade de São Paulo. Galo de Luta, o nome com o qual é comumente utilizado por ele mesmo, será como convencionamos denominá-lo. Ele tem ganho uma certa relevância tanto em outras iniciativas de pesquisas acadêmicas, como em aparições em veículos da mídia independente, como The Intercept Brasil, Revista Fórum, DCM, Brasil 247, entre outros. De modo constante, ao relatar a sua trajetória, Galo tem mencionado, com ares de orgulho, a leitura de livros seminais do processo de luta de classes como “Negras Raízes”, quando diz que “depois que eu terminei de ler o livro, fui escrever e o rap melhorou […] eu pensei: “é isso mesmo, esse é o segredo. Tem que ler para escrever” […] só que é muito louco isso. Eu estava lendo aqueles livros ali achando que eu ia virar bandido. Achando que o cara do rap era um bandido. E aí eu fui pedindo outros livros. Malcom X, 1984, Admirável Mundo Novo, A Revolução dos Bichos, As Veias Abertas da América Latina, Ensaio sobre a Cegueira”. Esse trecho de uma das falas do motoboy foi retirado de uma entrevista dada ao grupo de pesquisa Digilabour e nos traz pistas interessantes como Galo tem se ancorado em práticas de leitura para a sua formação como um cidadão crítico.
Importante pontuar que, ao nos aproximarmos da causa que Galo de Luta reivindica, ou seja, a luta contra o fenômeno da exploração e precarização de trabalhadores, sempre buscamos interconectar trabalho com a comunicação, pois em primeiro lugar, não há trabalho sem comunicação enquanto práticas materiais (FIGARO, 2018), pois os processos comunicacionais são fundamentais ao estruturar e organizar as próprias relações de trabalho. Como ainda afirma Williams (2011, p. 69), “a comunicação e seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de organização social”. Fundamental também convocar Berardi (2019) quando nos ensina, de forma enfática, que, nos tempos atuais, o capital se recombina com o trabalho precário e se tornam figuras dominantes na cena de nosso tempo. Há perspectivas teóricas que defendem um olhar ainda mais incisivo e de que estamos diante de um ponto de ruptura. Roque (2021) afirma, com um tom mais alarmista, que o que estamos vivendo é inédito e sem precedentes. Já Canclini (2020) tem se preocupado, no atual contexto sul-americano, em detectar os dilemas críticos das ações cidadãs, suas potências, ou frustrações e, por isso, elegermos Galo de Luta como objeto central desse artigo é um exemplo crasso de resistência diante desse cenário extremamente preocupante que se agrava.
Partimos do conceito que plataformas são infraestruturas digitais estruturadas por dados, organizadas por algoritmos e governadas por relações de propriedade, com normas e valores inscritos em seus desenhos (VAN DIJCK, POELL e DE WAAL, 2018; SRNICEK, 2018). Casilli (2020) fez uma grande pesquisa para mostrar como nessa plataformização do capitalismo e, sobretudo, em uma lógica incessante dos cliques, o trabalhador fornece sua cognição e sua forma de trabalho está baseada nos sentidos, da visão, da percepção, da capacidade de leitura e escrita, ensinando o algoritmo e ferramentas de inteligência artificial. Como bem apontou Antunes (2020), entre a corrosão e os escombros que vivemos, temos o advento desse proletariado digital, onde nas últimas décadas, floresceram muitos mitos acerca desse tipo de trabalho. Com o avanço das tecnologias de informação e comunicação não foram poucos os que acreditavam que uma nova era de felicidade se iniciava: trabalho online, digital, era informacional, finalmente “adentrávamos no reino da felicidade, onde o capital global só precisava de um novo maquinário, então descoberto” (ANTUNES, 2020, p. 21). No entanto, nas palavras de Berardi (2019, p.139) vemos que, na rede global, não há mais pessoas que prestam tempo-trabalho, mas um mosaico infinito de fragmentos reprogramáveis e celulares.
Outro pano de fundo fundamental para compreender os alicerces que sustentam esse modelo de sociedade que compartilhamos é a compreensão de premissas liberais, aqui entendidas como a exclusão de diferenças pessoais e coletivas, que tem como consequência uma dificuldade de nos reinventarmos como cidadãos na era digital (CANCLINI, 2020). Quando o notório pensador nos alerta que nem partidos liberais e a social-democracia dão conta mais de regular os atropelos das grandes corporações sobre direitos sobre a precarização do trabalho, nos faz ficar diante de uma enorme dificuldade de compreender essa relocalização da cidadania em uma era marcada pela decomposição de partidos e reconfiguração das comunicações. O que temos hoje, na verdade, é a “reprogramação do liberalismo que hoje conhecemos como neoliberalismo”, nas palavras de Brown (2019, p. 18).
O fato é que interpretar o contemporâneo e buscar algum tipo de precisão analítica para uma melhor leitura de nosso entorno é tarefa cada vez mais árdua. Na intenção de criarmos uma sistematização conceitual mais cuidadosa, elegemos uma perspectiva teórica altamente disseminada hoje e que funciona como bom arcabouço para leitura do tempo vigente. Entendemos que o conceito da pós-verdade nos ofereça bastante lucidez para caracterizar e compreender a cartografia da dimensão comunicacional contemporânea. Do ponto de vista das relações intersubjetivas, do discurso e da lógica do reconhecimento, ou ao menos uma cultura da indiferença que, quando se vê ameaçada, reage com ódio ou violência (DUNKER, 2017). Galo de Luta tem se colocado como um homem de resistência à exploração do capital. E é justamente esse tipo de postura vil defendida por Dunker (idem) que vemos do atual governo federal brasileiro, seja ao não incentivar políticas públicas protetivas ao trabalhador, ou então pelo descaso ao não promover nenhum tipo de debate de medidas reais que visem reduzir desigualdades sociais.
Ainda que o período que atravessamos hoje tenha se mostrado árduo em muito aspectos, ele é, ao mesmo tempo, fértil para organização de coletivos e de disputas simbólicas das mais diversas. Convocamos novamente Dunker (2017, p.6) quando bem observou que “hoje não há uma escola que se preze em São Paulo que não conte com um coletivo feminista. Os movimentos LGBTs, as organizações baseadas em identidade de gênero, de etnia ou de raça tornaram-se uma espécie de substituto da antiga vinculação sindical, que privilegiava a identidade de classe”. Formas de resistência e a busca por fissuras em um certo escapismo discursivo ainda tem espaço para ecoar em determinados contextos. Negri (2015, p. 82) contribui para esse debate ao comentar sobre o conceito de luta de classes biopolíticas e cita o Occupy Wall Street. Ele enxerga esses movimentos como questões biopolíticas que ampliam o conceito de classe. O pensador marxista italiano propõe “uma reconstrução radical do social a partir das singularidades que estão implícitas no conceito de multidão” e alerta que “multidão não é um conceito sociológico, e sim político […] é um espaço que se organizam dialética discursivas”. Galo tem se articulado em um movimento nacional com novas lideranças políticas negras do país, como Renato Freitas, vereador de Curitiba, que está sendo ameaçado de cassação ao lutar contra o oportunismo de políticos reacionários do fundamentalismo religioso na capital paranaense.
Em todas as suas participações em ambientes online, palestras, lives, debates, Galo de Luta tem como mote central de suas falas um tom de denúncia diante de um processo de “instabilidade e insegurança que são traços constitutivos dessas novas modalidade de trabalho […] ou uma nova espécie de trabalho sem contrato, na qual não há previsibilidade de horas a cumprir, nem direitos assegurados […] e que faz florescer uma nova modalidade de trabalho: o escravo digital” (ANTUNES, 2020, p.25). Em sua participação no podcast “Lança a Braba”, Galo de Luta descreve que “o patrão, hoje em dia, entrega o chicote na mão do empregado e diz ‘vai, bate em você mesmo até quanto você aguenta, mas bate se você quiser, não sou eu que estou batendo’ e o trabalhador acredita nessa falácia do ‘empreendedor de si mesmo’ e trabalha doze, treze, catorze horas por dia” […] quem dita nosso tempo é as nossas dívidas, mano […] que dita nossa correria é o patinete da nossa filha que ela viu no comercial da TV”. Muito evidente nesse relato que “a grande novidade da racionalidade neoliberal é criar um indivíduo que produz, controla e vigia, endivida e violenta a si mesmo” (TELES, 2021, p.12). Assim como evidenciamos nessa fala de Galo como o consumo, no caso de bens materiais (“a patinete da minha filha que ela viu no comercial de TV”), é algo central e determinante na construção da lógica de esforço diário de um trabalhador de aplicativo. Nesse sentido, sabemos que a função da publicidade é, entre tantas, servir ao sistema capitalista no sentido de criar imaginários desejados de determinado produto ou serviço e quando inseridas no plano simbólico da linguagem publicitária, ganham um sentido específico, por servirem à lógica da composição do recorte da experiência humana efetuado pelo discurso das marcas, como bem pontuou Carrascoza, Casaqui e Hoff (2007).
Importante examinar como esses depoimentos, com conhecimento de causa, que Galo de Luta costuma trazer em suas falas, nos evidencia como que novas lógicas algorítmicas de grandes corporações controlam “uma extensão do tempo que é minuciosamente celularizada […] onde células de tempo produtivo podem ser mobilizadas de forma pontual, casual, fragmentária, e a recombinação desses fragmentos é automaticamente realizada pela rede” (BERARDI, 2019, p.137). Ou ainda que, em um universo em que a economia está sob comando e hegemonia do capital financeiro, as empresas buscam garantir seus altos lucros exigindo e transferindo aos trabalhadores e trabalhadoras a pressão pela maximização do tempo e pelas altas taxas de produtividade (ANTUNES, 2020, p.33). Vale comentar ainda que a informalidade não pode ser vista necessariamente como sinônimo direto de uma condição de precariedade, mas sim a sua vigência expressa, com grande frequência e intensidade, apresentam clara similitude com a precarização (idem, p.75). Notamos também que nessas novas formas de trabalho por aplicativo, da hegemonia do capitalismo financeiro, da cultura algorítmica e do biopoder, dão margem à hipótese da emergência de uma sociedade incivil, onde mutações socioeconômicas descontroem os laços representativos entre povo e Estado […] em benefício de formas tecnológicas mais abstratas de controle social (SODRÉ, 2021). Esse capitalismo financeiro, o poder da mídia e a potência dos algoritmos são as bases práticas da mutação de um velho civilismo liberal. Já os desdobramentos sociais, políticos e culturais desse fenômeno são inquietantes por sua recorrente ameaça à estabilidade da democracia e das instituições em regiões diversas do mundo.
Tarefa impossível problematizar esses novos modos de trabalho por aplicativo sem trazer à baila a lógica do neoliberalismo, aqui vista com um “modelo onde se busca a construção de condições ideais para que a iniciativa privada possa se desenvolver livremente” (CASARA, 2021, p.111). Para o neoliberalismo, entre a ditadura e a democracia não há diferença de valor, mas de eficácia na garantia do direito privado dos indivíduos e da ordem de mercado (TELES, 2021, p.10). Recorremos novamente a Sodré (2021) em seu mais novo olhar que considera uma sociedade civil que é progressivamente redefinida por organizações privadas que encarnam o mercado como teodiceia e como processo de produção de subjetividades. Berardi (2019, p.138) questiona “como que a imagem do futuro pode ser gerada em um cérebro social fragmentado e celularizado até o ponto de não poder reconhecer-se como sujeito unitário? Na esfera do tempo precário, não se pode formular nenhum projeto de futuro, porque o tempo precário não se subjetiviza, não se torna sujeito de imaginação nem de vontade nem projeto”. Essencial nos servimos desses lúcidos apontamentos teóricos para nos aproximarmos de nosso objeto de estudo para compreensão da gravidade desse fenômeno.
O neoliberalismo promete um jogo onde as pessoas espontaneamente seguiriam as regras de um jogo com o objetivo de lucrar e levar vantagem (CASARA, 2021, p. 123) […] reproduzindo em toda sociedade a lei do mais forte, onde o outro se torna concorrente e, não raro, passa a ser um inimigo a ser destruído (idem, p.126). É justamente aqui onde reside um dos aspectos mais vis desse modo de funcionamento social, pois o sujeito neoliberal, ou seja, aquele submetido à racionalidade econômica, é incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito, pois entre empreendedores não surge amizade desinteressada” (CASARA apud HAN, 2018). Galo de Luta costuma sempre relatar sua hercúlea dificuldade de agregar mais e mais trabalhadores de aplicativo as suas reinvindicações coletivas e greves, sendo que uma das hipóteses que trabalhamos é justamente o fato da maioria dos trabalhadores terem sido colonizados pelo neoliberalismo, pela lógica da competição, do “só depende de mim”, entre outros imperativos propalados pela mídia. Nessas novas formas de trabalho, como dizem Dardot e Laval (2016), evidenciamos que “o neoliberalismo não impõe comportamentos, mas cria espaços para os sujeitos mergulharem de cabeça e entranhas num jogo de competição e desempenho, onde o empreendedor de si deve sempre ganhar e ser bem-sucedido” (p. 353).